Cena Drag Carioca

Jeffe Alves
6 min readAug 2, 2021

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O big bang magístico da arte estética e performática carioca

Num universo em constante expansão, formam-se essas estrelas. Veem-se imersas num ambiente infinito de escuridão. Dá para perceber adversidades contra aqueles que as cercam. Planetas, vez ou outra, têm de enfrentar meteoritos que os chocam causando impactos superficiais — sim, apenas superficiais. Isto porque o brilho da vida dentro deles independe de fatores externos danosos. Ela é alimentada pela luminosidade dos corpos celestes de luz própria.

As estrelas-drag são esses pontos de luz de uma cena de multiversos. Aquele universo do qual fazem parte diz respeito a um nicho de seres que têm de lidar com opressões ligadas à sua origem. É uma bolha universal, de fato, que é afetada por outras dimensões, mas que tem componentes únicos: aqueles que se enamoram por semelhantes a si. Há um universo do amor impossível, em que um sol pode se interessar por um minúsculo satélite; tem também aquele no qual raças distintas de seres vivem em assíduo conflito porque não se admitem.

Mas o caso em questão é diferente. O espectro de personagens é extenso, mas as protagonistas são as expressivas. As que exprimem o “eu” de maneira artística, de essência mística e condizente com seu espaço sideral. As transformistas, no princípio, mimetizavam realidades até, finalmente, encontrarem — ou chegarem perto — da própria. Enxergavam nos corpos femininos uma performance que não lhes era devida. E com o tempo as referências mudaram. Fato é que não é possível dissociar a arte de iluminar da condição de sua existência.

Nasceu como Lady Padê. Entretanto, não conseguiria se livrar da sujeira, mesmo na tentativa de expurgar o vício de si. “‘Matei-a’ porque nunca pararia de me drogar”, confessa. Finalmente, deu-se conta de que seus demônios internos poderiam ser batizados. São muitas características pessoais com as quais teve que lidar por lhe fazer mal. Então, por que não usar a expressão artística drag para tratar todos eles? Por isso o nome demoníaco [Belial é o 68º daemon da Goécia]: uma constante expulsão de energias, pensamentos e comportamentos ruins.

As transformistas, consideradas os verdadeiros astros, lidam de maneira peculiar com a opressão à qual são submetidas. Incorporam arquétipos, personagens ou identidades artísticas para dar a perspectiva iluminada das coisas, a essência gnóstica da realidade. Pode não ser conscientemente, porém imprimem em suas performances mensagens políticas e internas, com as quais existe possibilidade de identificação. Elas se pintam de modo que possam ser apreciadas de longe (física e virtualmente). Travestem-se de signos para dar sentido ao ato.

Então, em uma infindável quebra de padrões, Madamme Bellial incorporou um demônio hermafrodita, sem sexo definido. De acordo com os pós-modernos, “não-binário”; no paganismo, a representação do absoluto. Mas para a drag, uma figura anticristã com a qual decidiu trabalhar artisticamente após reflexões sobre questões relacionadas a gênero. Assim, sob forte efeito de entorpecentes, pariu sua persona. “Em uma viagem (de drogas), muuuito chapada (de ilícitas), veio a Madamme Bellial!”, revela.

“Tem que ter nome e sobrenome. Surge Madamme porque, sei lá! Eu salvei o Bellial, que é um demônio de mangá/anime, o Angel Sanctuary. Lá essa personagem cai do céu e vira esse ser só por não ter sexo definido. Drag pra mim é exorcizar seus grandes demônios!”, a artista explica, o que se relaciona com o estilo “tranimal”, interpretação animalesca da drag. Complementa-se a isso a estética industrial e fetichista de Bellial, bem como influências do movimento club kid, formado por pessoas que se vestiam e se maquiavam de maneira excêntrica — logo, para chamar atenção.

Os pequenos (ou imensos) sistemas solares são seus grandes shows. Do planeta mais próximo da luz do palco ao mais distante da mesma, há vida na plateia. Estão ali na intenção de fotossintetizá-la por meio da arte e do entretenimento — da cultura. Esses corpos são inconformes, não se sentem parte do universo; demora para se darem conta de que compõem o próprio. Os do fundão são os mais distraídos na própria rotação. Os do meio estão ocupados com relações, possíveis em razão do movimento de translação. Quem dentre a audiência está próximo do palco é mais atento e sedento.

Todos têm algo em comum, que é se apaixonar por semelhantes. A crença multiversal institucionalizada é a de que apenas corpos de naturezas distintas devem se relacionar. Isso causa demasiada tensão em discordantes naturais que se sentem pressionados a adotar comportamentos com os quais não há identificação. Isso torna planetas frios. Faz com que muitos não vejam sentido na própria existência. Contudo, são reais como qualquer astro do sistema, da galáxia, do universo ou multiverso.

“Eu sou um alienígena que veio de uma fuga em massa de uma [galáxia] distante. Quando caí na Terra, fui possuído por um demônio que respondeu a algumas perguntas sobre meu passado e me deu olhos especiais. Sozinha, vago pelas eras tentando fazer todos se perderem como eu me perdi, e esperando o anticristo para servi-lo”, narra seu conceito. Ela se vê como alguém necessário, revoltado e questionador que alerta por meio da arte. “Sinto que esquecem da realidade quando vão para um show de drag, e eu tento trazê-la e te lembrar que o [universo] não é bom lá fora, então não vai ser também aqui dentro!”.

Apesar da difícil odisseia no espaço até chegar onde está, a solidão não é uma realidade com a qual Nebraska tem que conviver. “Eu tenho uma haus, que é minha casa drag, e eu a amo. Sempre tivemos uma relação de família muito forte e isso é uma das coisas que me ajudou muito no início da jornada”, conta emocionada. “Nós nos ajudamos com a criação visual (maquiagem e cabelo), temos acesso a bazares para ver peças e até a desfiles de carnaval pra pegarmos roupas e acessórios”. A Haus of Scarllet também faz customizações nas montações, para finalizar de maneira que a represente.

“A Palloma é um nome bem forte aqui. Ela teve um papel muito importante no Rio para as drags mulheres entrarem para a cena com a mesma facilidade que eu. Militante, perfeita! Se hoje eu estou onde eu estou, é por causa de mulheres como ela que lutaram antes de mim”, declara a artista nascida há poucas meses. E essa noção de representação feminina reflete na origem do seu alter ego enquanto performer. Por se identificar com conceitos de céu e inferno, ela adotou a conotação sexual da personagem Maria Madalena, porém a transmite da forma mais pura, por se tratar de uma santa.

Em termos cósmicos, entre micro e macro, há níveis de interpretação estética e performática dessa representação da santidade — ou do espectro demoníaco. O nexo esotérico, que estabelece relação com forças astrais divinas, dá conta das expressões artísticas que incorporam demônios e anjos. Trata-se, por conseguinte, da esfera macrocósmica que estrutura essencialmente a arte e seu sentido, que explicaria os significados das performances e que imagem roupa e maquiagem querem eternizar.

Contudo, o microcosmo está enraizado na matéria. No que o homem pode ver com os próprios olhos, e não espiritualmente sentir. Diz respeito aos ambientes físicos onde acontecem shows, às pessoas que frequentam, àqueles que aparecem para mostrar suas habilidades da arte. Também às casas e indivíduos com os quais se pode ter apoio; bem como à mídia que contribui metafisicamente para a percepção mais superficial da transformista, logo, produto cultural.

Os sentidos da arte permeiam o espaço-tempo. A distância no infinito é igual a zero porque tudo leva ao mesmo ponto. Não há limite de como alguém é afetado. Não há previsão de quem vai conquistar. E impedimento de que tipo de corpo celeste vai despertar a luz da transformação. As drags aparecem em mídias que são relevantes para a elevação da persona, com promoção de fotos e vídeos seguindo esquemas de estética virtual, despertando engajamento, interação artista-fã e a vontade de ser uma delas.

No princípio, podem ter sido marginais, mas agora as personagens drag performam em quaisquer circunstâncias e sob influências indefiníveis. Como arte, tem caráter político e subversivo — embora não tenha que ter. Contudo, não se pode desconsiderar a história: personagens inspirados por condições de opressão, a níveis íntimos ou de grande escola. Mas se veio com uma finalidade, para criticar papéis sexuais astrais, então a única lei é não desafiar a gnose que se expande do ser ou entidade artística.

vídeo

daemones of soul

Câmera por Danty Zarkraus

Grande Reportagem Multimídia

idealizada e produzida por Jefferson Alves

Originally published at https://cenadragcarioca.wixsite.com.

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